Ameaça
29/08/2011 – Atualizado em 31/10/2022 – 9:06am
Especialistas advertem para a necessidade de políticas públicas que considerem o número cada vez maior de viagens e de migrações internacionais
Primeiro a pé, e milênios depois com automóveis, navios e aviões: mover-se de uma região para outra da Terra sempre esteve no DNA dos seres humanos. Na bagagem, porém, além de sonhos e expectativas, levam-se muitas vezes coisas bem menos nobres: vírus, bactérias ou doenças. Como um efeito colateral da migração, o transporte de agentes infecciosos é um dos grandes problemas ignorados pelas políticas atuais de saúde pública, afirma o periódico americano PLoS Medical, que dedicou uma edição especial aos efeitos dos movimentos populacionais sobre a saúde humana.
Segundo a série, muito mais que investir em novas drogas, construir hospitais ou mesmo fazer campanhas de prevenção às doenças, é necessário criar políticas de saúde que levem em consideração os movimentos humanos e os desafios que eles podem trazer para a saúde pública. “Na era moderna, o incrível volume de viagens internacionais acaba pressionando os Estados a gerenciar o fluxo de pessoas”, afirma, em um dos artigos, o pesquisador da New South Wales University, na Austrália, Zachary Steel. “Nesse processo, entretanto, as questões de saúde raramente norteiam as políticas migratórias”, comenta.
O que, porém, tem a ver com saúde pública o simples ato de viajar — ou mesmo se mudar para outro país? A resposta é simples. O organismo humano está adaptado para lidar com a maioria dos agentes infeciosos da região onde vive. Regiões diferentes da Terra possuem patógenos diferentes, para os quais apenas quem vive ali tem imunidade. Viajando mais, aumentam as chances de se entrar em contato com micro-organismos que o corpo não está preparado para combater. Além disso, ao se retornar à região de origem, existe o risco da inserção de organismos estranhos àquele local, e para o qual a grande maioria das pessoas não têm imunidade, possibilitando o surgimento de epidemias massificadas.
Um exemplo de como isso vem acontecendo é a malária. Cerca de 40% da população africana carrega o parasita causador da doença. Apesar disso, existem drogas que conseguem controlar o problema e evitar mortes em massa. O tratamento de 8 milhões de pessoas no continente, contudo, pode estar ameaçado. Isso porque surgiu bem longe dali, no sudeste asiático, uma variante do plasmódio causador da doença, resistente ao medicamento. A mutação não causaria problemas caso permanecesse na Ásia, onde a malária não assusta tanto, mas o trânsito de pessoas entre os dois continentes acabou inserindo em território africano a nova forma do patógeno.
De acordo com a pesquisadora Carolina Lynch, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, no Reino Unido, esse é um sério problema. “Indiscutivelmente, o transporte internacional de parasitas resistentes aos medicamentos é a maior ameaça aos tratamentos antimalária atualmente”, afirma a pesquisadora, que acredita que a influência das migrações na expansão da doença tem sido ignorada pelos governos. “Atualmente, não existem políticas de medição do impacto das migrações na proliferação de patógenos resistentes”, lamenta a pesquisadora em seu artigo.
Atraso
Segundo o professor de saúde internacional da Universidade de Brasília (UnB) Edgar Merchan Hamann, os movimentos populacionais de curto ou longo prazo apenas são considerados nas políticas de saúde quando um surto acontece. “Em geral, a questão de saúde passa longe das discussões das relações internacionais”, conta. “Basta, no entanto, que surja uma emergência para, automaticamente, um grupo ser responsabilizado — e, muitas vezes, esse grupo é composto por migrantes”, relata.
Historicamente, há dezenas de exemplos de como uma determinada população, de uma origem geográfica específica, pode ser responsabilizada pela disseminação de um determinado mal. “Esse é um problema antigo. Na Idade Média, a epidemia de peste bubônica foi atribuída aos judeus. Séculos depois, no início da epidemia de HIV, os haitianos foram apontados como os ‘culpados’ pelo problema e incluídos nos grupos de maior risco de transmissão, gerando preconceito contra esses grupos”, conta o especialista.
Qualquer região está vulnerável a “receber” ou “enviar” doenças. “O Brasil é um dos grandes reservatórios de febre amarela do mundo. Como o país tem um movimento considerável de migração da Colômbia, pela Amazônia, e da Bolívia, os problemas que hoje estão restritos a essas regiões têm uma chance maior de chegar aqui”, conta. “Tem que se entender que todos os lugares têm as suas especificidades e, da mesma forma que uma região pode receber uma doença, ela pode enviar as suas para outras regiões”, completa.