Leishmaniose
21/12/2011 – Atualizado em 31/10/2022 – 9:01am
Tão rápidas quanto a transmissão da leishmaniose, considerada uma das piores epidemias mundiais dos tempos atuais, são as campanhas de socorro que se espalham pela internet na tentativa de sensibilizar governantes brasileiros a encontrar o fim para esse mal. Depoimentos de famílias que perderam parentes e cães para a doença “pipocam” na rede. Não é à toa. De um canto a outro do país, o mal provoca barulho, tendo contaminado quase 30 mil brasileiros somente em 2009. Se, então, é tão ameaçador e antigo no mundo, por que até hoje uma vacina não foi desenvolvida? Na verdade, ela já foi criada, e está sendo usada no interior de Minas Gerais, onde 16 mil pessoas receberam a imunização e ficaram protegidas. “Mas pergunto: existe interesse farmacêutico por doença de pobre?”, provoca Wilsom Mayrink, médico e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que há 40 anos se empenha na busca pela cura da leishmaniose e é responsável pelo projeto, desenvolvido no Departamento de Parasitologia da universidade.
Na penúltima reportagem da série sobre doenças negligenciadas, a estrela é a leishmaniose — que já invadiu o meio urbano, fez vítimas de diferentes classes sociais e ainda enfrenta preconceitos, como lamenta Mayrink. Ele e sua equipe estão atrás da cura desde a década de 1970. É para o tipo de leishmaniose tegumentar e cutânea, que acomete a pele e as mucosas do contaminado, que eles inventaram a vacina. Somente em 2009, a doença atingiu 21 mil brasileiros e, em Minas Gerais, onde ela é mais comum, foram 1.021 infectados, segundo dados do Ministério da Saúde.
A pesquisa coordenada pelo médico foi baseada em estudos do pesquisador paulista Sales Gomes realizados em 1939. Em 2001, depois de 30 anos de trabalho, a imunização foi liberada pelo governo federal para uso terapêutico. Na época, a injeção apresentava resultados positivos, mas mesmo assim não foi aprovada para o uso de efeitos de resistência à doença. Em 2002, a equipe a aplicou em 16 mil pessoas em Caratinga, no Vale do Rio Doce. “Até este ano, nenhum deles pegou a doença”, revela Wilsom, destacando alguns ocorridos que comprovam a eficácia da dose. “Teve um senhor que nos procurou e disse que estava doente, e estranhava, pois ninguém da sua família estava. Aí, ele lembrou que sua esposa e filhos tinham se vacinado, e ele não” , conta, animado.
Além de uso humano, os pesquisadores também desenvolveram um antígeno para uso canino. “A Fundação Ezequiel Dias (Funed) sinalizou interesse em fabricar em larga produção, mas, enquanto isso não ocorre, continuamos a aplicá-la em Caratinga. Temos resultados altamente satisfatórios, mas a indústria farmacêutica não quer investir”, lamenta o pesquisador, garantindo que isso não impede os cientistas de continuarem o trabalho. “Acreditamos no que criamos e temos bons resultados para isso.”
Para o tipo visceral da leishmaniose, que acomete as vísceras, como o fígado e o baço, e é considerada a forma mais grave, tendo contaminado 3 mil brasileiros em 2009, também há avanços. Foi comprovada em agosto a eficácia de 96,4% da vacina canina Leish Tec, criada por pesquisadores do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG e produzida pelo laboratório Hertape Calier Saúde Animal SA. Os mesmos cientistas encaram agora outro desafio: o de criar a vacina para os humanos, que, se aprovada, deve chegar ao mercado em cinco anos, estima-se.
A vacina recombinante foi produzida pela Hertape Calier, por meio de acordo de transferência de tecnologia. Em 2008, ela chegou ao mercado. Aprovada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a imunização desde então é indicada por veterinários para cães — cujos donos chegam a pagar R$ 100 por cada uma das três doses necessárias na primeira vez que o animal é vacinado. Depois, é dada uma dose anualmente.
Como preconizado pelo ministério, a empresa responsável pela Leish Tec fez a análise da eficácia das doses em campo, na cidade de Porteirinha, no norte de Minas Gerais. Metade da população inicial de 1,2 mil cães saudáveis recebeu a vacina. “Depois de dois anos, 96,41% dos animais imunizados não apresentaram a doença. Isso é o primeiro passo para a proteção entrar no calendário nacional”, aposta o veterinário e gerente de marketing da empresa, Luciano Resende.
De acordo com ele, além da eficácia da dose foi avaliada a possibilidade de transmissão da doença. “O cão, ao entrar em contato com o protozoário, se vacinado, reduz em 50% sua capacidade de transmitir a doença para o ser humano.”
Os pesquisadores mineiros querem agora dar um passo maior. Segundo conta um dos responsáveis pela vacina, Ricardo Gazinelli, coordenador-geral do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCT), professor do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB/UFMG) e pesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou da Fiocruz Minas, já foram dados os primeiros passos para desenvolver a mesma vacina em humanos. A fase é de escolha do adjuvante imunológico.
“Estamos testando em camundongos os vários tipos existentes. Vai demorar. Não é rápido, pois está em teste a capacidade de induzir a resposta imunológica do ser humano. Quando criamos a vacina, há 10 anos, usamos um adjuvante aprovado para o uso em animais, e não em pessoas”, diz, reconhecendo que não será preciso outra década para encontrar a fórmula certa. A expectativa é de que a novidade esteja pronta em cinco anos. “Para o financiamento da proposta, haverá a parceria com uma grande indústria farmacêutica, com quem já estão em andamento os últimos acertos”, revela.
Diagnóstico
Enquanto Minas Gerais se mexe para encontrar a vacina certa contra a leishmaniose, em São Paulo pesquisadores se debruçam para encontrar um meio menos invasivo para diagnosticar a doença. Segundo explica a pesquisadora do Laboratório de Parasitologia do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP) Lúcia Maria Almeida Braz, hoje, para saber se a pessoa está ou não doente, é feita uma pulsão da medula. “É uma forma muito invasiva, a pessoa que se submete fica com dor, precisa ser internada”, diz.
A intenção da USP é mostrar, segundo ela, que é possível fazer o teste usando amostra de sangue. “Estamos na fase dos experimentos e a expectativa é de que em 2012 já tenhamos uma resposta em mãos”, aposta, explicando que o atual teste leva o que é recolhido de medula óssea na lâmina para ser analisado em microscópio. “O mesmo pode ser feito com o sangue, pois a sensibilidade é igual. É o que queremos provar”, destaca Lúcia, revelando que serão coletados 3ml de sangue de 40 pacientes. “Em meados de março, teremos o resultado disso”, promete.